sábado, 19 de outubro de 2013

VELHA AMIGA II

                                                                                                                 
                 
VELHA AMIGA  II

                
É tarde já!

                A esta hora eu deveria dormir a sono solto, pois amanhã, segunda feira, será um dia atribulado, corrido como todos os dias chamados úteis.

              Úteis a quem? E por que ?

              Não sei, mas sei que da cama me levantei para registrar, dizer de uma lembrança que há dias comigo vive, de uma forma tão nítida que posso até dizer, que comigo convive a figura da velha amiga.

             Figura viva da velha matriarca de talhe pequeno, nariz, ao que me lembro, adunco e, os olhos espertos, vivos como seu espírito atilado.

            De humor ligeiramente sagaz, era a velha amiga, uma amiga da família, como toda a sua família composta de grande prole entre filhos, netos e bisnetos.

            Gente boa e de bom coração.

           Gente de tradição nesta baixada santista, em que os homens de sua prole, eram quase todos voltados ao convívio das leis e, a filha, ao que eu saiba, a única filha mulher, casara-se já não criança para a época, com um bem posto senhor , homem bonachão, culto, inteligente e quieto, retraído até, ainda mais em se tratando de autoridade e, bem mais quando comparado ás gentes da matriarca!

          Gentes que, sob certos aspectos, poder-se-ia dizer, serem um tanto irreverentes com os usos e costumes predominantes à época.

          Sua gente, como ela era, era e ainda é, de personalidade definida, com atitudes de vanguarda, fazendo prevalecer desde sempre, o que hoje a “jovem guarda”, com muita propriedade, assume e torna moda, preconceitos derrubando, ranços aniquilando, impondo a realidade aos bolores da sociedade.

         Enfim, fujo ao assunto! Quando na verdade, era dela que eu queria dizer, da velha Madame, senhora já de certa idade, quando criança a  conheci, viúva entrada em anos, cercada de respeitabilidade que sabia merecer.

        Como gostava de um carteado!

        Jogava como que! Dominava o pife-pafe e, não havia dia em que não jogasse, batendo sempre e de surpresa apanhando aos incautos que, por vê-la entrada em anos e a cochilar por sobre as cartas, não esperavam ouvi-la dizer, ao descarte do outro lado: -“Bati”.

         Diziam que sua sagacidade vinha das origens   de além mar e, seu humor, a sua “verve”, era na realidade, bem ao estilo dos franceses.

         Sempre atenciosa e gentil, a mim como criança, agradava e encantava, como figura das vovozinhas de contos de fadas.

         Mais tarde, como menina-moça, sempre com ela convivendo, fui aprendendo a querê-la bem e, ria-me quando ela pegava o telefone, desavisada do inconveniente da extensão e, ao meu querido tio, seu amigo e amigo também do pife e assim chamava: “- Dr. Noronha, escuta, escuta mas não fala “ e combinava o carteado, sem saber que do outro lado, minha tia a tudo ouvia, ouvia e sorria da malandragem da velha amiga que, com seu marido entabulava conversação, combinando uma jogatinazinha de que ela não participava, por ter às cartas aversão.

        Já moça, quando á nossa cidade retornei, me lembrei da velha amiga e, calculando-a mais velha, afastada de sua paixão pelo decorrer dos anos, do tempo que a tudo afeta, resolvi visitá-la.

      Da minha casa á sua, num pulo de poucas quadras, cheguei á av. Bernardino de Campos, o canal dois, arborizado e tradicional.

       Bati, esperei e entrei logo a abraçá-la!

       Fez-me festa a velha Senhora, que tão velha não me pareceu.

        Contou-me que ainda jogava, que às cartas não deixara e, que na vista continuava a colocar pinga com limão!

        Depois das perguntas mútuas, de falarmos dos meus e dos seus, para surpresa minha, de moça tola e despreparada para os avanços da vida, pôs-se ela, com graça e um “que” matreiro, a espantar da moça a meninice, com piadas alegres e de pimentas cheias! Todas elas e enrubescer-me, pois eram piadas de Bocage!

       Uma figura dessas não desaparece!

        Não soube quando ela se foi, não fiquei sabendo do seu enterro, mas sua figura nítida, seu espírito vívido e atilado permanecem nas minhas lembranças, não como coisas do passado, mas como exemplo presente de como devem ser as gentes para sobreviverem para sempre, deixando seu rastro de saudade.

        Suas atitudes perenes, por não se limitarem ao tempo, ficaram como exemplo do que é ser e viver com realidade.
                                                                
                              

                                                                        
                           

                                             

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