É tarde já!
A esta hora eu deveria dormir a
sono solto, pois amanhã, segunda feira, será um dia atribulado, corrido como
todos os dias chamados úteis.
Úteis a quem? E por que ?
Não sei, mas sei que da cama me
levantei para registrar, dizer de uma lembrança que há dias comigo vive, de uma
forma tão nítida que posso até dizer, que comigo convive a figura da velha
amiga.
Figura viva da velha matriarca de
talhe pequeno, nariz, ao que me lembro, adunco e, os olhos espertos, vivos como
seu espírito atilado.
De humor ligeiramente sagaz, era a
velha amiga, uma amiga da família, como toda a sua família composta de grande
prole entre filhos, netos e bisnetos.
Gente boa e de bom coração.
Gente de tradição nesta baixada santista,
em que os homens de sua prole, eram quase todos voltados ao convívio das leis
e, a filha, ao que eu saiba, a única filha mulher, casara-se já não criança
para a época, com um bem posto senhor , homem bonachão, culto, inteligente e
quieto, retraído até, ainda mais em se tratando de autoridade e, bem mais
quando comparado ás gentes da matriarca!
Gentes que, sob certos aspectos,
poder-se-ia dizer, serem um tanto irreverentes com os usos e costumes
predominantes à época.
Sua gente, como ela era, era e ainda
é, de personalidade definida, com atitudes de vanguarda, fazendo prevalecer
desde sempre, o que hoje a “jovem guarda”, com muita propriedade, assume e
torna moda, preconceitos derrubando, ranços aniquilando, impondo a realidade
aos bolores da sociedade.
Enfim, fujo ao assunto! Quando na
verdade, era dela que eu queria dizer, da velha Madame, senhora já de certa
idade, quando criança a conheci, viúva
entrada em anos, cercada de respeitabilidade que sabia merecer.
Como gostava de um carteado!
Jogava como que! Dominava o pife-pafe
e, não havia dia em que não jogasse, batendo sempre e de surpresa apanhando aos
incautos que, por vê-la entrada em anos e a cochilar por sobre as cartas, não
esperavam ouvi-la dizer, ao descarte do outro lado: -“Bati”.
Diziam que sua sagacidade vinha das
origens de além mar e, seu humor, a sua “verve”, era
na realidade, bem ao estilo dos franceses.
Sempre atenciosa e gentil, a mim como
criança, agradava e encantava, como figura das vovozinhas de contos de fadas.
Mais tarde, como menina-moça, sempre
com ela convivendo, fui aprendendo a querê-la bem e, ria-me quando ela pegava o
telefone, desavisada do inconveniente da extensão e, ao meu querido tio, seu
amigo e amigo também do pife e assim chamava: “- Dr. Noronha, escuta, escuta
mas não fala “ e combinava o carteado, sem saber que do outro lado, minha tia a
tudo ouvia, ouvia e sorria da malandragem da velha amiga que, com seu marido
entabulava conversação, combinando uma jogatinazinha de que ela não
participava, por ter às cartas aversão.
Já moça, quando á nossa
cidade retornei, me lembrei da velha amiga e, calculando-a mais velha, afastada
de sua paixão pelo decorrer dos anos, do tempo que a tudo afeta, resolvi
visitá-la.
Da minha casa á sua, num pulo de poucas
quadras, cheguei á av. Bernardino de Campos, o canal dois, arborizado e
tradicional.
Bati, esperei e entrei logo a abraçá-la!
Fez-me festa a velha Senhora, que tão
velha não me pareceu.
Contou-me que ainda jogava, que às
cartas não deixara e, que na vista continuava a colocar pinga com limão!
Depois das perguntas mútuas, de
falarmos dos meus e dos seus, para surpresa minha, de moça tola e despreparada
para os avanços da vida, pôs-se ela, com graça e um “que” matreiro, a espantar
da moça a meninice, com piadas alegres e de pimentas cheias! Todas elas e
enrubescer-me, pois eram piadas de Bocage!
Uma figura dessas não
desaparece!
Não soube quando ela se foi, não fiquei
sabendo do seu enterro, mas sua figura nítida, seu espírito vívido e atilado
permanecem nas minhas lembranças, não como coisas do passado, mas como exemplo
presente de como devem ser as gentes para sobreviverem para sempre, deixando
seu rastro de saudade.
Suas atitudes perenes, por não se
limitarem ao tempo, ficaram como exemplo do que é ser e viver com realidade.