domingo, 14 de outubro de 2018

FISGADA PELAS GUELRAS

        



                                                                       
               FISGADA PELAS GUELRAS
                                                                                                         
                                                      

                Nadando pelas marés do quotidiano na internet, encontrei um texto em que admirável amiga e escritora, reproduziu de um de seus vários livros, texto em que indagava “Quem nunca?”
                Essa indagação em preto sobre fundo branco saltou aos olhos e ecoou em diferentes decibéis, enveredando por diversos caminhos, ressoando aos meus cativos ouvidos e percorrendo todas as fimbrias do meu ser, corpo e alma, me fez vibrar intensa e diversificadamente em indagações e repercussões que sacudiram e arrebataram todo o meu ser.
                Assim fisgada, enganchada, não pela boca, mas pelas guelras, passei a respirar nuances de indagações sobre os possíveis “Quem nunca?”, com plenas repercussões e os mais variados caminhos de corpo e alma!
                Na verdade, “Quem nunca” desejou a morte querendo desesperadamente sentir a vida? “Quem nunca” duvidou da fé clamando em mudo silêncio ou em altos brados pelas bênçãos celestiais? “Quem nunca” questionou dogmas e certezas frutos da fé como da lógica ou ciência?
                “Quem nunca” se sentiu perdido, só, desprotegido, descrente de suas certezas atávicas e dons místicos ou legados e bagagens espirituais?
                Quem neste mundo ou em outros, não buscou desesperadamente o eco de seu ser, para se crer ou reconhecer ou ainda se encontrar, no afã de se identificar com seu próprio ser, sabendo de verdade quem ou o que ser?
                Quem neste mundo não se perdeu desesperadamente em perguntas e devaneios em busca de respostas antes nunca cogitadas ou indagadas?
                Quem nunca...?
                Quem?


                                                                       Mariza C.C. Cezar
                                                                                                   
                                                                                                                                                             
                                                                                                                                                             

domingo, 16 de setembro de 2018

CHUVA...

                                                                                                                                         
                CHUVA...
                                                                                                     


                        Temos tido já por largo tempo, chuva intermitente que se alterna em um único dia e assim fazendo alternância entre dias da semana e mesmo para mais de mês, com um solzinho entre medroso e atrevido, que tem dado as caras enquanto brinca de esconde-esconde com a chuva mais ou menos forte, trazendo frio de humor também instável.
                    Assim têm estado o meu humor, ao sabor do clima e suas alternâncias.
                    Estava a bem pouco a tiritar de frio enquanto espiava a chuva e essa, me levou a outra e em outro ritmo, bem intensa e inesperada, chuva de outros tempos, tão outros que me fez lembrar de expressão antiquíssima que se referia aos tempos em que “chovia canivetes”.
                    Essa chuva dita de canivetes, na verdade eu nunca vi, entretanto vi e vivi o dia em que choveu lá em casa, outra que esquentou o tempo por muitos dias, e foi tão forte e inesperada que decorridos anos e deles décadas, ainda me surpreende e que se hoje me faz rir ou pelo menos sorrir, deixou marca e história, vez que incomum!
                   O dia a que me refiro foi aquele em que lá em casa choveu rabo de tatu!
                   Verdade que tal chuva foi de fato tão forte, dessas que a tudo arrasta, levando a léguas o que encontra e carrega.
                   Em casa choveu e foi chuva torrencial e enquanto a água escorria do nosso telhado, despencava levando junto diversos, na verdade muitos rabos de tatu!
                    Para quem não sabe ou não conhece, é chamado de “rabo de tatu”, uma espécie de relho que meu pai, filho de fazendeiro e íntimo desses artefatos, o comprava e solenemente o dependurava em um prego na copa lá de casa.
                   Aquilo era um símbolo de alerta para a ninhada!
                   Quantos ele ali os dependurasse, sumiam e sem dizer palavra, ele os repunha e isso tanto se repetia que se tornou um hábito ao qual eu e minha irmã pouco mais nova, mal dávamos atenção, mas com a intempestiva e esdrúxula chuva, meus irmãos menores sentiram o tempo esquentar ameaçador.
                   Acontece que os dois meninos, quietinhos vinham subtraindo na calada das noites, as temidas e ameaçadoras armas que atiravam ao telhado, uma após a outra e a chuva trouxe todas a baixo de uma só vez!
                  Contam as lembranças e a história da família que choveu “rabo de tatu” e foi só lá em casa!

                                                             Mariza C.C. Cezar
                                                                                                     

                                                                                                                                

segunda-feira, 30 de julho de 2018

SAMIRA... (Ato I)

                                                                 
                                                                     
                SAMIRA...
                (Ato I)
                                                       


                Noite de lua cheia no calor do deserto de dunas e areias grossas, escaldantes.
                Céu estrelado cintilando como brilhantes sobre veludo escuro envolvia e alimentava o ar de mistério e magia que imperava naquele acampamento de nômades do Saara.
                Um perfume intenso e agradável envolvia aquele recanto que irradiava força e magia dos sons da noite, com o crepitar de uma fogueira e o som de um alaúde, despertava controversos sentimentos de paz, romance e sensualidade.
                Sensualidade que encontraremos na tenda maior, a do senhor daquele acampamento e caravana, aquela que era a maior e mais forte e respeitada a percorrer o deserto desafiador e cheio de promessas.
                No interior da rica tenda, o som do alaude alimentava e embalava a dança ritualística de linda morena de tez dourada pelo abrasador sol do deserto.
                Cabelos soltos e escuros caiam-lhe em largas ondas, acariciando-lhe os sedutores ombros e acompanhavam aos sensuais movimentos do corpo totalmente entregue à sinuosidade e requebros da dança ritualística.
                Delicados e selvagens seus volteios com a bela companheira que por ela se enroscava e deslizava, abraçando-a enquanto juntas e sinuosamente sensuais despertavam e invocavam forças atávicas e cósmicas.
                Tal ritual vez por outra se repetia com o fim de avivar e perpetuar a força e o poder, a invencibilidade do amado senhor daquele grupo nômade, aquele belo guerreiro que era detentor de toda a devoção e paixão da nossa bailarina que, com sua cobra serpenteava envolvida pela noite e magia!
                Esse romântico romance e vida duraram o encantamento de muitas e muitas luas, até que um dia nossa bela dançarina, estarrecida encontrou sua companheira de bailado e magia, morta!
                Acesso de fúria e ciúmes do belo e moreno senhor!
                Morta a serpente, em transe de estupefação e dor, nossa dançarina partiu com a próxima caravana que por aquela passou.
                Mais adiante no tempo, vamos reencontrá-la bela como sempre, altiva e graciosa, tendo ao rosto diáfano véu que lhe desnudava apenas, lindos e expressivos olhos que faiscando, deixavam antever promessas veladas de mistério.
                Sobre uma mesa, no Cairo, dançava linda e sinuosa como sempre, mas nas mãos o que agora tinha era um pandeiro cheio de fitas coloridas pendentes e arrematadas com guizos que acompanhavam seus movimentos e requebros cadenciando-os.
                Estava só! Não tinha mais sua companheira de bailado e magia e tampouco sua plateia preferida, na verdade a única que a motivava, o seu amor, o guerreiro que a movia e norteava.
                Na verdade nossa bailarina dançava porque amava à vida e a essa é que festejava com seus volteios, porque a dor que morava velada no fundo de seus olhos, não permitia que amasse além da vida.
                Esse episódio deve ter sido breve porque bem mais tarde iremos reencontrá-la, mas isso será outra estória (ou seria história?) que ficará para outra vez, pois tudo na vida tem seu tempo e enredo.

                                                         Mariza C.C. Cezar
                                                                                                                                          
                                                                                                                                                         

domingo, 10 de junho de 2018

DE CÁ A ACOLÁ

                                                                                                                                                       
                DE CÁ A ACOLÁ
                                                                                          

                Adolescente e moça mal saída dos cueiros e fraldas, brinquedos e muitos livros de estórias de mundos da fantasia com seus reis, príncipes, rainhas e princesas, conservei românticos sonhos de que o mundo seria um país das maravilhas e reinos encantados.
                Tropecei é verdade com algumas bruxas e dragões, mas acreditava piamente ser capaz de vencer a todos eles com a minha sabedoria, espírito indômito, coragem e a ajuda do bem de que me sentia merecedora e afilhada. Acreditava em Deus, em mim, na verdade e justiça!
                Sabia ser detentora do merecimento, do poder e da força. Triunfaria!
                Pobre moçoila tola!
                Certo é que sempre encontrei bruxas e alguns bruxos e ilusionistas, outro tanto de dragões aos quais deixava para trás, dando-os por vencidos assim como às dificuldades, mais certa ainda de ser abençoada pois cria totalmente na vitória do bem e dos bons!
                Mal sabia que tantos e tão doídos e diversificados seriam os percalços e que ao largo da caminhada, a estrada poderia ser pedregosa, íngreme ou tortuosa e que suas forças mal carregariam á armadura ou sustentariam as roupagens e que os ossos de seu esqueleto teriam dificuldades com as intermináveis e monótonas retas ou com curvas e sinuosidades assustadoras que se descortinavam inesperadamente ao longo da viagem pelo mundo real e menos ainda que a solidão seria sua comensal e companheira diuturna a cada despertar do sol ou quartos da lua com seus jogos de claro e escuro a cadenciar a vida.

                                                           Mariza C.C. Cezar
                                                                                                                                       
                                                                              

terça-feira, 3 de abril de 2018

A DECIMA TERCEIRA CARTA!

                                                                                                                                                     
                A DECIMA TERCEIRA CARTA


                                                             

                Não estou pretendendo inovar, muito menos ser o pai ou a mãe da “criança”, o caso é que me surpreendi a filosofar sobre como a certa altura da vida, passamos a perceber que realmente morremos pouco a pouco.
                Sim, pode-se até não se notar, mas a cada decepção sofrida, a cada elo partido nas afetividades de toda uma vida, ao se constatar destruído o crédito em pessoas que sempre tivemos como afetos certos e incontestes, nós morremos um pouco e assim, pouco a pouco, pedaços a pedaços das certezas e afetividades ruídas, ruímos com elas de etapa a etapa.
                A morte para alguns é surpreendente e prematura, para outros uma doce ou aterrorizante surpresa e para outros ainda, ela se anuncia imperceptível e intermitente!
                Essas mortes afetivas repercutem na alma e vão deixando marcas indeléveis no físico com a morte de neurônios agredidos, confrangidos.
                De morte a morte, vamos vivendo ou sobrevivendo, buscando a fé e manter a esperança, mas não seremos mais por inteiro.
                Parte e, por vezes grande parte de nós morreu com a morte afetiva e com as crenças destruídas.
                Espero que enquanto restar um pouco que seja, de mim, eu viva intensa e convicta na certeza de que chorando aos lutos da caminhada, ainda há vida e “EU SOU”, e a Onipresença Divina vive em mim!



                                                                               
                                                                                                     Mariza C.C. Cezar
                                                        
                                                             

                                                                                                                                          

quinta-feira, 15 de março de 2018

ELE FOI ESPECIAL!


                                                                                                                                           
                ELE  FOI  ESPECIAL!
                                                                                                                 

                Muito comum se falar em saudade, principalmente os mais velhos, aqueles que têm história e recordações.
                No meu caso tenho imensa saudade e posso dizer que de “alguém” muito especial, tão especial que ainda parece ter vida, tão presente e atuante companheiro enquanto foi meu.
                Nas minhas memórias ainda tem e nenhum outro dos muitos que tive, significou companheirismo e identidade como o primeiro que marcou território e me fez cativa!
                Saudade sim do meu fusca “Branco Lótus”, o meu primeiro carrinho nascido prematuro em  fins de 1969, com certificado 2221 de l970.
                Ele era branco, amigo, companheiro para todas as horas e nunca se fez de rogado!
                Meu fusquinha era frugal, parcimonioso, econômico, prestativo, me levava às compras, feiras livres e aos  shoppings, ao trabalho e à faculdade, à igreja, aos bailes e boemias.Ele ainda  me levava a São Paulo pela Anchieta até quando chovia torrencialmente caindo barreiras pela estrada!
                Após visitas a parentes e a amigos, namorar e por vezes a paquerar, ainda a fazer filmes a título de “bico” para comerciais televisivos, ainda tinha disposição de levar a mim, minha irmã e suas filhas pequerruchas, à Praça da República e de lá, acompanhando curiosas ao movimento hippie, a Embu das Artes e, por vezes carregando de carona a um” bicho grilo” expositor e à sua bagagem.
                Voltávamos, ele e eu ao volante, sempre e à hora que fosse, pela Estrada Velha bela e histórica, então aberta ao público. Estrada quase sem trânsito e também sem pedágio, o que era muito convidativo!
                Meu “Branco Lótus” me levava às colunas sociais como à fila do INPS, madrugada a dentro, abrigando a minha mãe que dormitava enquanto eu guardava lugar na longa fila da rua Santo Antonio na Bela Vista que outros chamam de Bexiga, em São Paulo.
                O meu muito amado “Fusquinha” carregada ainda meus sonhos, projetos, ilusões, aventuras, as crianças da família e de amigas e também às caronas ocasionais e às sistemáticas nas idas e vindas do trabalho e faculdade.
                Mais parecia um cabritinho não podendo ver morro que subia! Subia a Serra do Mar, o Morro da Nova Cintra que subíamos pelo Marapé e descíamos pelo lado da Linha Um que conduz a São Vicente, uma descida íngreme e tortuosa. Subia também o Morro de Santa Terezinha, então aberto a visitações, à Ilha Porchat, ao do Maluf e a todos os outros do Guarujá, principalmente aos que acompanhavam à estrada ao lado do canal para Bertioga.
                Quantas alegrias, confidências, choros copiosos e sentidos que só poderia verter na intimidade amiga e companheira desse velho e querido amigo de todas as horas, sempre solidário e discreto!
                Como me doeu na alma quando uma manhã ele apareceu doente, faltava-lhe um pedaço  do para-choque dianteiro, mais precisamente do lado direito! Meu irmão caçula, então um rapaz, o surrupiara pela madrugada, junto a um amigo também amigo das badernas e sempre acompanhado de um violão que lhes garantia sucesso nas empreitadas e assim ambos desencaminharam o meu “Branco Lótus” pela madrugada adentro, deixando o pobrezinho avariado,
                Que saudade do meu amigo!
                Fusca “Branco Lótus” l970!
                Vivemos em plena simbiose e harmonia!
                Momentos inesquecíveis!

                                                                  Mariza C.C. Cezar

                                                                                                                                  
                                                                                                                                                                   

segunda-feira, 5 de março de 2018

O REINO DO DOUTOR PORQUINHO

                                                                                                                                                                           
                O REINO DO DOUTOR PORQUINHO
                                                                                                                                                                          

                Era uma vez..., e sempre no mundo do faz de conta, n’uma selva de concreto, mármores, granitos e bronzes, por entre rubras e macias passarelas, em tronos imponentes ou antro mal iluminados, úmidos e malcheirosos, vivia a bicharada em ordem de importância, na hierarquia do cifrão, todos reinados pelo astuto Doutor Porquinho fantasiado de Leão.
                Esse Doutor Porquinho, amava às honrarias, gostava dos prazeres e vibrava de autoridade, camuflando-se entretanto, quando em visitaa outros reinos, ou quando por sua vez, a seus reis recepcionava, em pele de cordeiro ou ainda, em gato ronronante.
                Doutor Porquinho, extasiava-se com fantasias, com roupagens, com mesas fartas e banquetes, amava às solenidades e comprazia-se com bajuladores. Assim seu reino primava pela injustiça, descontentamento, sofrimento, mas ninguém ousava se manifestar, ajustavam-se seus pares enquanto os dissidentes se mantinham ou eram mantidos à distância, honrosamente e, os súditos se subordinavam.
                Como era instável e imprevisível, como são todos os déspotas, aos bichos do seu reino, mantinha em sobressalto, chegando a sufocá-los pela prepotência, enquanto por vezes, fazendo-se de magnânimo, distribuía sorrisos e saudações que gratificavam e traziam êxtase àqueles que, agraciados por tal benevolência, se enchiam de alento e esperança, enquanto se sentiam privilegiados e eleitos, abençoados pela sorte e com o futuro garantido, contentando-se com tão pouco!
                O Doutor Porquinho sentia-se um sábio jurisconsulto e emérito cientista, alquimista, ocultista enquanto para confraternizar, gabava a veia poética escrita ou falada e, os dotes culinários, dizendo ainda tocar piano, violão, acordeão, fazendo-se passar por especialista nos sete instrumentos, embasbacando àqueles que se deixavam deslumbrar, tal qual um malabarista ou ilusionista.
                Vez por outra o Doutor Porquinho mostrava-se  boêmio e galanteador, domador de bicho brabo, capaz de vencer rodeio, encantando às fêmeas de seu reino e àquelas que por ali transitassem e, colocando de sobreaviso aos machos, súditos ou não, mas que se sentiam diminuídos e impedidos de concorrer com tal Autoridade e com tantos dotes e artimanhas.
                Um belo dia, os anos a passar, o Doutor Porquinho ponderando, resolveu procurar uma consorte que, no pensar de muitos seria uma senhora sem sorte, entretanto, resguardando-se dessas observações não enunciadas, o senhor Rei daquela selva, se pôs a namorar gentil gazela, filha que era de nobre das redondezas.
                Decorrido espaço de tempo protocolar e guardado o devido decoro, chegou-se ao casamento, sonho de toda donzela, e meta necessária aos objetivos políticos daquele reino animal.
                A bicharada se embeveceu com o acontecimento ímpar e, por dias,  ouvia-se o cantarolar da marcha nupcial que martelava a cabeça de quase todos eles, bichos românticos e sonhadores. Alguns até mantinham uma esperança secreta de que o romance mudasse alguma coisa no Reino, abrandando o pulso férreo do senhor Rei.
                Os preparativos da festa foram apreciados, assim como a solenidade, a riqueza  de detalhes refinados e coloridos, o protocolo da corte, o cheiro das iguarias e o tilintar dos cristais e talheres reluzentes em prata e ouro e ainda, o farfalhar  dos tecidos suntuosos  e bordados em pedrarias que cintilavam ofuscando até aos mais  habituais frequentadores dos salões e colunas sociais dos reinos animais.
                Soberbos e belos, os noivos receberam à nobreza e aos representantes de outros reinos, valsaram, brindaram após as bênçãos dos pais, padrinhos e do líder e conselheiro religioso, trocando juras de boa convivência, fidelidade e amor eterno, partindo, a seguir, para encantada e promissora lua de mel.
                Decorridos alguns poucos anos, quando todos se perguntavam se aquela união duraria e ainda cogitavam sobre o destino do reino, foram agraciados com a visita da senhora cegonha, carregada que estava pelo ,transporte da ninhada encomendada, que veio à luz encabeçada por gentil gazelinha seguida de mais duas, todas dentro da linhagem materna, o que frustrou e enfureceu ao Douto Porquinho fantasiado de Leão.
                Para guardar as aparências, foram festejadas as herdeiras, batizadas e apresentada à corte e à plebe, entretanto como na festa da vida não dura, mesmo no mundo animal, o amor acabou e com ele os sonhos.
                No bom interesse das partes e reinos, as coisas correram rápidas e discretas, à despeito da “boca pequena” maledicente que balbuciava com riqueza de detalhes o acontecido, apesar do receio predominante entre o comum dos mortais animais.
                Se antes as coisas não eram boas, depois dos últimos acontecimentos, pioraram e muito!
                A bicharada miúda tremia de medo! Medo havia em tal reino até dos companheiros, pois nunca se sabia qual dos bichos privava da confiança do Douto Porquinho e nem onde o perigo espreitava, o caso é que, logo uns subiam de posto, enquanto outros... em seus cantos permaneciam à míngua quase que do necessário à sobrevivência ou à decência animal, vivendo amorfa e rotineiramente massacrados.
                Poucas leis esse Rei baixava, entretanto, justamente por não havê-las escritas, tudo era lei, ou melhor, tudo haviam por proibido: não se podia falar (e bicho fala?), não se podia pensar (e bicho pensa?), não se podia... Ah! Isso também não se podia, só se assim o Seu Rei o quisesse.
                Aquela floresta, pelo longo tempo da gestão do Doutor Porquinho fantasiado de Leão, tornara-se um feudo onde a bicharada mal respirava e a tudo discretamente espiava, na ansiedade do que estaria por vir, mas sempre dançando a música do comando e no ritmo das badaladas do relógio.
                Por longo tempo o Douto Porquinho reinou, por longo tempo o comum dos bichos penou e, entre eles até a dona coruja e suas primas, pois a elas, mais que aos outros bichos, o Rei afastava, e o fazia por temê-las, pois as sábias aves, até de olhos fechados enxergavam, e quietinhas em seus cantos, ouviam sem nada dizer ou fazer, a não ser suas obrigações, incomodavam.
                O Doutor Rei era inseguro, no fundo deveria saber-se fraco e que, se Rei era, não era Leão, mas era apenas um porquinho camuflador, oportunista, interesseiro e usurpador, portanto temia por seu trono, tinha medo do silêncio consciente daquelas que conhecem, veem e sabem.
                A impressão passada pela aparência que ostentava, era a de que o Senhor Rei era o máximo! Pouco discreto e nada humilde, pois entendia que tudo lhe era devido e de tudo merecedor, tendo todos os direitos, mesmo os de vida e morte naquele território animal.
                Conta a estória do faz de conta que assim continuou por longo tempo, até que o Bom Deus, cansado de tanta injustiça, de tanta maldade e badalação, puxou o rubro tapete, a encarnada passarela e, lá do alto do seu trono, o Doutor Porquinho balançou, perdeu o equilíbrio e mesmo não sendo gato, levou um grande tombo de sete palmos, de sete vidas, caiu... e morreu, dando lugar a outro bicho que de tão bom, de tão justo, aquela selva transformou em mundo de verdade e, os bichos em humanos.
                Conta ainda o livro de atas da história daquele reinado animal, que muitos dos seres ali existentes se fizeram homens e mulheres, carregando alguns, em suas feições humanas, os traços dos animais que foram. Hoje, onde há beleza e justiça , vemos algumas pessoas que por ali transitam, vivem e trabalham, com características de: cobra, camelo, galo, cigarra, avestruz, cachorro, macaco, veado, até vacas por lá convivem com delicadas gatinhas, com laboriosas formigas, cantantes cigarras e sábias corujinhas.
                O que nos leva a entender que se o mal não dura para sempre, podendo até ter um final trágico ou triste, o bem é sempre recompensado, produzindo por vezes milagres, mas o importante é sabermos que a verdade prevalece ao tempo, tanto que os reais sentimentos e atitudes, acabam por se manifestar e incorporar à nossa alma, fazendo-se presentes até em nossa aparência.
                Lembremo-nos ainda, que se nos tempos modernos se recomenda com grande ênfase os cuidados com a saúde e o físico, deveremos nos preocupar primeiro em cuidar dos sentimentos e atitudes, pois será a saúde deles que determinará quem ou como seremos e como nos apresentaremos, por toda a eternidade neste mundão de Meu Deus!
                                                                                         
                                                                                                                                                                                                        Mariza C.C. Cezar
                                                                                                        

                                                                                                                     

                                                             



       
                                                            

sábado, 20 de janeiro de 2018

ERA UMA VEZ...

                                                                 
                         ERA UMA VEZ..
                                                          
                                                               

                No tempo de capa e espada, em que príncipes e também aventureiros percorriam estradas e densas florestas montados em seus corcéis, é que vamos encontrar o garboso príncipe da nossa estória, montado em cavalo branco, saindo de densa mata, para uma clareira.
                Sedento dirigiu-se para uma pequenina casa em que se via flores à janela e esvoaçante cortina branca, enquanto da chaminé saia fumaça.
                Chegando mais perto deparou com lindo quadro emoldurado pelo batente da janela!
                Nada mais, nada menos do que a jovem mais bela que já vira, graciosa em alvas roupas íntimas ou seja, uma blusa branca de alças com passa-fita, espartilho encimando calças levemente bufantes, presa á altura da barriga da perna pela fita do arremate que franzia gracioso babado.
                Essa linda donzela surpreendida assim, na intimidade do seu lar, tinha os cabelos presos em longa trança   ao lado dela, à altura de sua orelha uma rosa vermelha.
                Encantado e sedento foi se aproximando e apeando, quando recebido por figura de velha mulher que ao varal, vislumbrara a dependurar roupas.
                Apresentando-se disse da sede e convidado a entrar, encontrou a sonhadora e desenvolta donzela que lhe prendera a atenção.
                Foi encanto e amor à primeira vista!
                Matou a sede e teve os desejos despertados e se quedou irremediavelmente apaixonado.
                Arrebatado de pronto, pediu à velha senhora a mão da moça a quem faria sua princesa.
                A velha senhora, avó da donzela a quem criara desde a mais tenra idade, vendo o brilho em seus olhos e a postura e decisão do jovem príncipe, submissa, aquiesceu ao pedido.
                Quebrados assim os protocolos pelo imperante desejo do príncipe, seguiu a jovem afoita, em sua garupa.
                Tão deslumbrada estava com o conto de fadas que estava vivendo, que nem notou a paisagem que percorriam até que chegaram a um castelo de pedras brutas em tons de cinza.
                No interior do castelo, foi apresentada à Rainha-Mãe e à não tão jovem princesa, irmã daquele que muito em breve viria a ser seu marido.
                Logo chamado o capelão e em tempo recorde, foi realizado  com pompas,o casamento real com os protocolos e aparatos da época.
                Assim, dentro das frias muralhas de pedra, passou a viver a agora jovem princesa.
                Decorridos poucos anos, distante da simplicidade e da bela e selvagem natureza que circundara seu lar de menina sonhadora, a princesa começou a se sentir desmotivada, cansada de viver praticamente trancada na alcova, em macio colchão de plumas em que o príncipe a jogava, no ardor de sua insaciável paixão e desejo.
                Entre quatro paredes, em colchão de plumas foram os dias decorrendo e essa era a sua ocupação e prisão, da qual raramente saia e quando o fazia, era dentro do frio castelo em que cruzava com as não menos frias, sogra e cunhada reais.
                No entanto um belo dia, passou pelo castelo uma caravana de saltimbancos que recrearam a corte com seus números de malabarismo, cantos e danças, e a jovem princesa que estava a perder o viço pela rotina, se encantou e o brilho voltou a seus olhos, como o doce sorriso aos lábios, pois reencontrara a alegria e a vida naquelas pessoas livres.
                A eles, decidida e sorrateira se juntou quando partiram. Fugida deixou a Inglaterra com a caravana e com eles atravessou o mar onde é hoje o Canal da Mancha e foram parar em Rouen, porto fluvial.
                Aí se deixou ficar. Vamos encontrar a nossa jovem com uma branca blusa franzida no decote e ombros, rodada saia colorida com cintura alta apertando a  já fina cintura e um engomado aventalzinho branco, servindo em bandejas, rústicas canecas de cerveja em também rústica taverna de beira de cais de eclética freguesia, pois ali bebiam trabalhadores do porto, alguns burgueses e eventuais cavalheiros.
                Rápida, alegre, elegante, a formosa jovem atraia a freguesia e a todos atendia com presteza e solicitude. Com seu jeito e charme despertava olhares, mas sua postura afável mantinha os mais afoitos enquadrados e sem jeito.
                Sério e refinado fidalgo se enamorou e passou a ser assíduo à taverna até que a conquistou e pedindo as contas, com ele partiu deixando na taverna corações também partidos.
                Vamos encontrá-la em casa grande e assobradada em esquina de praça, calçada com pedras também brutas. Agradável residência circundada por gracioso jardim, grades e portão de ferro fundido como a balaustrada da sacada do quarto e que era arrematada por jardineira de preciosos cravos.
                Assim passou a viver a agora jovem senhora, e viveu seu conto de amor e encanto de amar, por algum tempo, descobrindo que o seu cavalheiro não era muito diferente do príncipe, pois era ciumento e também a prendia em casa, se bem que agradável, arejada, colorida pelas flores que atraiam pássaros canoros. Com o passar dos dias também lhe pareceu uma prisão.
                Nossa heroína amava a liberdade e não era arruaça que procurava, apenas alegria e liberdade de ser e viver.
                Fugiu novamente! Vamos reencontrá-la servindo na mesma taverna!
                Um dia reapareceu o fidalgo e veio decidido a arrancá-la dali e, quando percebeu serem vãs suas palavras e argumentos, tresloucado e desvairado, desembainhou a espada e incontinente a nossa jovem foi ao chão! Da sua blusa branca, sobressaia uma mancha vermelha de sangue que crescia em formato de coração!
                Seu último olhar foi da espada à mão que a empunhava e ela levou nos olhos, a figura do seu agressor!


                                                                 Mariza C.C. Cezar